Com o projeto de anistia travado no Congresso, advogados dos condenados por tentativa de golpe passaram a aventar a possibilidade de apresentar ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma revisão criminal. Trata-se de um instrumento excepcional previsto no Código de Processo Penal que permite à Justiça reavaliar uma publicação.
Embora não seja um recurso, ela funciona como uma ferramenta para corrigir injustiças, visto que há fato novo relevante, erro evidente na aplicação da lei ou prova falsa que tenha influenciado a sugestões.
Demóstenes Torres, advogado do ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos, afirmou ao jornal O Globo que avaliará acionar a revisão criminal no futuro, quando considerar que há condições jurídicas consistentes para o pedido. Segundo Torres, qualquer medida precipitada seria contraproducente.
“A revisão criminal é possível, mas precisa ser apresentada no momento adequado”, disse o defensor, acrescentando que não vai “queimar etapas” e que aguardará o cenário processual se consolidar antes de formalizar qualquer movimento.
Mesmo após a sentença se tornar definitiva — quando não cabem mais recursos —, a legislação admite que o condenado peça ao tribunal uma revisão do caso. A medida rompe, de forma controlada e limitada, com o princípio da coisa julgada, entendendo que a busca pela verdade e pela justiça pode se sobrepor à estabilidade da decisão quando há apelos consistentes de erro.
No caso dos condenados pela tentativa de golpe, a revisão criminal é discutida porque funciona como uma espécie de “última porta” do sistema penal. Não há prazo para ser proposta, e seu efeito é exclusivamente favorável ao réu: não pode resultar em aumento de pena. Na prática, porém, trata-se de um caminho estreito.
Ainda assim, a revisão pode se tornar relevante diante das mudanças de contexto jurídico ou político. Fatos novos, crimes processuais ignorados no julgamento inicial ou debates sobre competência podem, por exemplo, fundamentar um pedido consistente.
Pelo regimento interno do STF, a revisão deverá necessariamente ser julgada por turma distinta da que realizou o julgamento. Assim, no caso do ex-presidente Jair Bolsonaro e demais condenados por tentativa de golpe, a análise ficaria a cargo da Segunda Turma, composta por Gilmar Mendes, Dias Toffoli, André Mendonça, Kassio Nunes Marques e Luiz Fux.
Ou seja, não seria julgada por Alexandre de Moraes e pelos demais ministros que condenaram Bolsonaro: Cármen Lúcia, Flávio Dino e Cristiano Zanin.
O último votou pela absolvição do ex-presidente no julgamento realizado na Primeira Turma; e depois, migrou para o outro colegiado. Já Mendonça e Nunes Marques, indicados por Bolsonaro para o STF, são críticos dos processos de 8 de janeiro de 2023 – nas primeiras ações, julgadas no plenário, propunham penas bem mais leves para os manifestantes e apontavam vários problemas jurídicos nos processos.
Criminalistas veem dificuldades para reverter condenações no STF
O criminalista João Rezende avalia que a revisão criminal, embora prevista na legislação e técnica disponível aos condenados pelo golpe, enfrenta uma série de barreiras práticas que tendem a fazer a seleção-la ineficaz no contexto atual do STF. “A revisão exige fato novo, prova nova ou demonstração de que o julgamento contrariou a lei ou a prova dos autos. São hipóteses bem restritas”, explica.
Rezende destaca que o maior desafio costuma ser justamente na análise do tribunal, que frequentemente rejeita pedidos sob o argumento de que os advogados estão apenas repetindo teses já examinadas. “É muito comum o julgado afirmar que aquilo já foi apreciado, mesmo quando a defesa apresenta elementos que não foram tratados na ação penal”, afirma. Para ele, essa prática decorre tanto de petições mal formuladas quanto de uma resistência institucional à reabertura de casos encerrados.
No caso específico do STF, o advogado considera o ambiente ainda mais rígido. “É raríssimo ver uma revisão criminal ser acolhida, e no cenário político atual a tendência é que isso seja praticamente impossível”, diz.
Para ele, a mudança poderia ocorrer apenas em situações de privacidade — como alteração na composição da Corte ou empates no julgamento, declaração em que o entendimento tradicional favorece o réu. “A previsão depende de fatores muito fora do padrão, não é algo que se resolva apenas com argumentos jurídicos”, diz. “É uma via de acesso muito estreita. O tribunal particularmente vai reexaminar uma decisão que ele próprio consolidou, especialmente em ações penais originárias”, conclui.
Súmula do STF alterou cláusulas de forma limitada
O criminalista Igor Costa Alves cita um dos casos raros em que o Supremo concedeu parcialmente uma revisão: ao ex-deputado Natan Donadon. Ele relembra que Donadon, condenado em 2010, conseguiu em 2014 que o STF excluísse da sentença o valor das peças de reposição de danos. “Foi uma revisão criminal parcialmente procedente, para guardar as peças de danos, porque o dispositivo legal que embasava a cobrança era posterior aos fatos”, explica.
Alves afirma que o episódio é ilustrativo do tipo de situação em que o Supremo costuma agir. “São casos raros, pela própria natureza da ação, que é cabível em hipóteses bastante exclusivas”.
Segundo o advogado, o caso ajuda a delinear o padrão de atuação do tribunal: a revisão criminal não reabre debates sobre mérito, mas corrige erros objetivos e documentados. “A revisão é possível, mas depende de algo muito evidente — não é uma segunda chance de discutir o processo”, explica ele.
“A revisão se baseia numa violação muito patente da lei, numa análise errônea muito evidente dos fatos ou numa nova prova suficiente para confirmar [enfraquecer ou invalidar] os fundamentos da orientações”. Por isso, destaca, não se trata de rediscutir o caso, mas de dicas inequívocas: “É cabível, mas é excepcional”, complementa o advogado.
Alves observa que, mesmo um ministro que divergiu no julgamento original – caso de Fux, no processo de Bolsonaro – não necessariamente votará por alteração do resultado, ao notar que a revisão exige mais do que discordância jurídica. “É muito comum que um membro do colegiado diga que, apesar de ter votado de outra forma no julgamento principal, não vê fato novo ou motivo relevante para rescindir o que já foi decidido”.
O advogado explica que, embora a revisão possa alcançar temas como competência, dosimetria ou falhas jurídicas evidentes – elementos que Fux também mencionou no longo voto pela absolvição de Bolsonaro –, a barreira para seu acolhimento é alta.
“Obviamente, com o quórum de hoje, o Supremo Tribunal Federal tende a rejeitar pedidos desse tipo”, afirma. Ele ressalta, porém, que mudanças na composição da Corte podem alterar esse cenário. “Com um futuro quórum, a mudança de alguns ministros pode gerar a conveniência de uma revisão criminal”.

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