Para saciar o apetite de outros países e do mercado interno, a produção de carne no Brasil está a todo vapor. Nem mesmo as pastagens debilitadas pela seca prolongada deste ano frearam a produção nacional, que devem chegar a 10,2 milhões de toneladas, um recorde na série histórica. O preço da carne, no entanto, deve enfrentar pressão altista no médio prazo.
A mudança no ciclo pecuário, associada aos efeitos da estimativa, foi publicada na última ata do Comitê de Monetária (Copom) como fator para correção do cenário de inflação de curto prazo, e para explicação da elevação da taxa Selic em 1 ponto percentual, de 11,25% para 12,25% ao ano.
A questão também foi mencionada no Relatório Trimestral de Inflação, publicado nesta quinta-feira (19) pelo Banco Central: “A principal surpresa ocorreu na alimentação no domicílio, devido às fortes elevações do preço da carne bovina. Embora já se esperesse que o ciclo do boi fosse reduzir a oferta de animais para o abate, a evolução dos preços ocorreu mais cedo e foi mais intensa do que o antecipado”, diz o documento.
Fruto de uma pecuária mais tecnificada, o rebanho brasileiro é abatido cada vez mais jovem e pesado para atender ao padrão “Boi China”. Em que pese esses ganhos de produtividade, os últimos três meses registraram forte demanda doméstica coincidindo com uma maior agressividade nas exportações. Isso mexeu com os preços. No acumulado de doze meses, até novembro, a alta do grupo de carnes dentro do IPCA foi de 15,43%, contra uma inflação geral de 4,87% no mesmo período.
De um semestre para outro, a cotação da arroba do boi gordo nunca saltou de R$ 180 para picos de R$ 350, e se mantém atualmente acima de R$ 300. “A gente tinha visto num curto espaço de tempo uma gangorra tão forte ”, observa Thiago Bernardino, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP).
Câmbio favorecendo sua disparidade nas exportações
Para analistas ouvidos pela Gazeta do Povovários fatores concorrem para a alta da carne, mas o principal deles teria sido o aumento das exportações. Em outubro, o país embarcou 435 mil toneladas de carne bovina, 41% mais do que no mesmo mês do ano passado e 5% mais do que em setembro. Nos primeiros dez meses do ano as exportações superaram todos os embarques de 2023.
“O abate de animais e a produção de carne foram muito fortes. Mas o que mesmo foi a exportação. Além do volume e do valor por tonelada, o câmbio favoreceu muito”, observa Lygia Pimentel, estrategista-chefe da consultoria Agrifatto. Outro fator importante na alta da carne teria sido a mão do governo.
“Com certeza a expansão dos gastos do governo gerou um aumento de renda e uma redução de desemprego. E isso manteve o consumo doméstico aceitando preços mais altos, estimulando absorver o que restava aqui no mercado doméstico. Foi uma situação de demanda direcionando esses preços para cima, muito mais do que oferta”, sublinha o analista.
Recuo temporário no preço da carne
Tradicionalmente, o período de festas de fim de ano costuma inflacionar os preços da picanha, alcatra e contrafilé nos supermercados. Desde o início de dezembro, no entanto, eles se estabilizaram ou recuaram. Seria um sinal de cautela para os consumidores, que buscam alternativas mais baratas.
“Quando a carne bovina começa a subir, a população tende a migrar para proteínas mais acessíveis, como cortes de frango, de suínos, embutidos e ovos. Essa migração é normal e a gente já viu isso acontecer nos anos de pandemia”, aponta Fernando Iglesias, analista de pecuária da agência Safras & Mercado.
No prazo de curto prazo, porém, alguns fatores apontam para interrupção temporária no preço da carne. A expansão dos confinamentos em outubro, de 32,7% em relação ao mesmo mês do ano passado, deve aumentar a oferta de boi gordo aos frigoríficos no início do ano. Entre fevereiro e março será uma vez de incremento dos volumes devido ao abate das fêmeas que não emprenharam na “estação de monta” no verão.
Novo ciclo peculiar à vista
Mas a época das vacas gordas não está no fim. A peculiar vive uma fase de transição, de virada de ciclo. Até aqui, o preço baixo dos bezerros fazia com que os pecuaristas não titubeassem em descartar fêmeas para o abate. Segundo Bernardino, do Cepea, a curva já começou a mudar, com valorização das crias e diminuição do abate de matrizes. Esse processo de reconstituição dos rebanhos, no entanto, é lento e só deve atingir seu pico no fim de 2026 e início de 2027.
“Provavelmente ainda temos mais abate de fêmeas, que servem como um peso contrário à valorização do boi gordo”, argumenta Bernardino.
Para o analista de mercado da Scot Consultoria Alcides Torres, os preços atuais ainda têm mais relação com a qualidade do passado do que com a mudança do ciclo pecuário. “Normalmente no último trimestre do ano os pastos estão muito ruins, a quantidade de oferta de boiadas diminui e o preço sobe, além do consumo, que melhora. É a oferta de fêmeas no primeiro semestre do ano que vem que vai dizer se teremos preços constantemente elevados até 2026”, afirma.
De qualquer forma, uma mudança de ciclo já entrou no radar da Companhia Nacional do Abastecimento (Conab), que prevê que no ano que vem a produção de carne no país cairá 4,3%, ficando em 9,8 milhões de toneladas.
O ciclo pecuário com viés de alta dos preços da carne deve chegar ao agosto de 2026, ano de eleição. Justamente quando as promessas de campanha de carne barata voltarão ao debate político.
Esquerda defende imposto sobre exportações
Esse horizonte desfavorável ao governo petista já faz com que as lideranças de esquerda voltem a defender impostos de exportações sobre a carne. “Está na hora de adotarmos, como esforço nacional, a proteção do consumidor brasileiro de carne bovina. Via câmbio, com a valorização da moeda brasileira, e via imposto de exportação para os produtos da bovinocultura de corte”, defende José Giacomo Baccarin, que foi secretário de Segurança Alimentar e Nutricional entre 2003 e 2005, no primeiro governo Lula.
Baccarin reproduziu o discurso do próprio presidente Lula, que ainda na campanha eleitoral, em 2022, afirmou: “Vamos discutir se vai continuar só exportando ou se vai deixar um pouco pra nós comermos”. Apesar do apelo populista, a medida tem potencial de desastre para o setor.
“Sem exportação, a gente desestimula o produtor. Ele reduz a produção e o preço fica mais caro. É o que aconteceu com carnes na Argentina. É o que acontece com o leite aqui. Se a gente aumentasse nossa produtividade, teria muito leite para ficar no mercado doméstico e exportar. Mas a gente não exporta, não estimula a produtividade e somos importadores. O leite da Argentina e do Uruguai entra mais barato do que o nosso”, pondera Bernardino, do Cepea.
Maior parte da carne fica no país
Apesar de o Brasil liderar as exportações globais de carne bovina, entre 70% e 75% da produção é destinada a abastecer o mercado interno. Segundo o frigorífico Minerva, graças ao aprimoramento genético do rebanho e à introdução do farelo de milho na dieta (DDG, coproduto das usinas de álcool), o país conseguiu elevar o teto de abates para 39 milhões de cabeças por ano. Quatro milhões a mais do que no ciclo pecuário anterior.
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