O racha no Partido dos Trabalhadores sobre o corte de gastos no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode iniciar a legenda a uma situação semelhante à vivida pela vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, nas eleições americanas. Enquanto uma ala do PT, representada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenta implementar medidas de austeridade para tornar a reeleição de Lula viável em 2026, um grupo desenvolvimentista mais radical, representado pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, aposta nos gastos e desenvovimentismo no Brasil, questões que derrubaram os democratas nos Estados Unidos.
A perda do poder de compra do eleitor americano é avaliada como um fator determinante para a derrota de Kamala Harris. Se a economia brasileira seguir o mesmo caminho, analistas avaliam que a disputa pelo Palácio do Planalto em 2026 também pode ser influenciada por esse fator.
Assim como o presidente norte-americano Joe Biden vem fazendo desde 2020, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aposta no aumento do gasto público como indutor da economia. A diferença, no entanto, reside no facto de Biden ter tido sucesso ao estimular a economia do seu país no pós-pandemia de covid-19, com inflação relativamente controlada, desemprego em baixa e juros básicos em queda.
Por outro lado, os efeitos inflacionários dos gastos públicos foram sentidos pela população e acabaram desaguando na eleição para a Casa Branca. Isso porque o fim dos estímulos econômicos da pandemia e da inflação fez com que o cidadão americano comum tivesse um aumento de apenas 1% em sua renda disponível per capita entre 2021 e 2023. No primeiro mandato de Trump, o aumento foi de 7%, segundo o economista democrata Robert Shapiro. Ou seja, apesar da macroeconomia ter ido bem, a inflação pesou no bolso do norte-americano diminuiu seu poder de compra.
No caso brasileiro, os indicadores registram desemprego em baixa, inflação controlada – apesar de estar acelerando -, e atividade econômica moderada. Mas a relutância do governo em não cortar gastos de forma concreta pode contribuir para que a taxa básica de juros, a Selic, continue a crescer. E isso pode não ser suficiente para conter a inflação.
Nesta quarta-feira (6), o Banco Central elevou a Selic em 0,50 ponto, e os juros chegaram a 11,25% ao ano. Isso significa que ganhará mais caro para o cidadão e o governo contraírem crédito no mercado. Além desse fator, a inflação oficial de preços ganhou força e subiu 0,56% em outubro, ante alta de 0,44% em setembro. De acordo com o IBGE, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo acumula alta de 4,76% nos últimos 12 meses.
Para a presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann, a pressão para o corte de gastos é uma “chantagem” do mercado financeiro. Ela argumentou que “o único descontrole na economia não está nos gastos do governo, mas nos juros estratégicos que fazem crescer a dívida pública”.
“É uma chantagem aberta dos mercados financeiros, que cria expectativas falsas e irrealizáveis, manipulando o câmbio, a bolsa e as decisões do BC. Apostam contra o país, e os 'analistas' na mídia ainda dão respaldo”, disse o petista no “X”. Mas Gleisi não apresenta argumentos técnicos e o consumidor brasileiro já sente o aumento na conta do supermercado, mesmo com os resultados econômicos mostrados pelo governo do PT.
Já o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, possui uma visão aposta à parlamentar. Pertencente a uma ala mais pragmática do PT, Haddad e sua equipe econômica entendem que o corte de gastos é necessário para que o arcabouço fiscal estipulado pelo governo possa ser cumprido. Em conversa com jornalistas na quarta-feira (6), ele afirmou que os ministros estão “conscientes” com a tarefa de reforço do marco fiscal.
A equipe econômica acena com um corte de R$ 50 bilhões nas despesas obrigatórias do governo, para conseguir manter a meta fiscal – zerar o déficit das contas públicas em 2025.
“Os ministros estão conscientes das tarefas que temos pela frente do arcabouço fiscal, da previsibilidade, da sustentabilidade, das finanças no médio e longo prazo”, afirmou Haddad.
Apesar da intenção, o ministro ficou frustrado por Lula nesta sexta-feira (8) com o adiamento da decisão sobre o corte de gastos. A reunião desta sexta-feira entre o presidente, a equipe econômica e os ministros das áreas afetadas pelo pacote de corte de gastos terminou sem acordo, após três rodadas de negociação.
Poder de comprar foi pedra no sapato para Kamala e pode ser para o PT em 2026
A percepção do eleitorado sobre a economia é encarada como essencial para uma reeleição. A disparada nos preços pós-pandemia de covid-19 impactou a produção e a distribuição de diversos produtos nos Estados Unidos. Com o pacote de estímulos aprovado pelo governo para enfrentar a crise sanitária, a economia sofreu um choque de oferta e demanda, fazendo com que a inflação em junho de 2022 chegasse a 9,1%.
Apesar de o índice ter diminuído ao longo do tempo, chegando a 2,4% em setembro, os preços não caíram ao patamar pré-pandemia. Isso ocorre porque a desaceleração da inflação não resulta em queda de preços, mas em aumento menor dos preços ao longo do tempo – o que acabou desaguando na opinião do eleitorado norte-americano.
No Brasil, a insatisfação também é evidente. Uma pesquisa publicada pelo instituto Genial/Quaest, em julho, revelou que 63% dos brasileiros sentem que o poder de compra diminuiu em comparação ao ano passado, refletindo um cenário de pressão econômica. Esse percentual, embora inferior aos 67% registrados em maio, ainda é elevado e indica uma insatisfação persistente. Esse fator pode se tornar decisivo nas próximas eleições, com a economia se tornando uma prioridade para os candidatos.
Para Adriano Cerqueira, professor do Ibmec de Belo Horizonte, a recuperação econômica pode enfrentar desafios que impactarão diretamente as eleições de 2026. Ele explica que, embora o PIB tenha mostrado certo crescimento, isso tem ocorrido “por conta da expansão de gastos públicos”, o que leva a um aumento nas taxas de juros e nos custos para o refinanciamento da dívida pública. “O governo está pagando caro pelo refinanciamento da dívida e está perdendo a capacidade de investimento”, afirma Cerqueira, ressaltando a dificuldade em promover uma melhoria substancial nas contas públicas.
Em outras palavras, a ala do PT liderada por Gleisi insiste em aumentar os gastos públicos e tentar aumentar o salário mínimo artificialmente, sem que haja também um aumento de produção. O grupo de Haddad enfrentou resistência de Lula para cortar gastos e optar pelo aumento das taxas. Mas esses fatores acabam, na prática, criando um cenário em que o salário do brasileiro tende a ser capaz de comprar cada vez menos produtos.
Para o especialista Adriano Cerqueira, as dificuldades econômicas podem minar as chances do PT em 2026, tanto com Lula quanto com outro nome da esquerda. “O governo Lula perdeu 2023 e 2024 para fazer um ajuste fiscal que essas condições de uma melhoria das contas públicas”, avalia. Sem essa recuperação, Cerqueira acredita que a insatisfação econômica deve permanecer alta, dificultando a trajetória do partido na próxima eleição.
Já na leitura do cientista político Elton Gomes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), o atual governo brasileiro enfrentou um desafio político em relação à economia elaborada ao que ajudou a derrubar os democratas nos Estados Unidos.
“No Brasil, o cidadão comum, o eleitor médio, se preocupa com a capacidade de pagar as contas, de comprar itens essenciais e de garantir algum conforto”, afirma Gomes, destacando que essa percepção é um forte indicativo de insatisfação pública.
Ele também afirma que a política econômica atual está criando uma percepção negativa que pode ser explorada por futuros candidatos da oposição. “Seja um sucessor de Bolsonaro ou o próprio Bolsonaro, caso reverta sua inelegibilidade, a oposição terá um cenário favorável para atacar a situação econômica no próximo pleito”, afirma o especialista.
Racha no governo sobre economia esbarra na realidade econômica do país
A divergência entre Gleisi Hoffmann e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sobre o andamento da economia brasileira acaba de entrar em choque com a realidade econômica do país. O presidente do PT é contra o corte de gastos estruturais, como em saúde e educação, seguro-desemprego e benefícios aos servidores públicos.
Por outro lado, Haddad e sua equipe visam um corte profundo nos programas sociais do governo como forma de conter o gasto público, o que vem provocando uma crise dentro do governo. Nesta quinta-feira (7), o ministro Carlos Lupi disse que deixará o governo caso a Previdência Social seja afetado pelos cortes treinados por Lula.
“Quem tem que fazer algo nesse processo é quem tem muito, não quem não tem nada. Como vai pegar a Previdência? O salário médio das pessoas é R$ 1.860. Você vai fazer o que com isso? Tirar direito adquirido? Não conte comigo. Você vai baixar o salário? Não conte comigo. Vou deixar de ter ganho real [no salário mínimo]? Não conte comigo. Se isso acontecer, não tenho como ficar no governo”, afirmou ao jornal O Globo.
Mas o que a teoria econômica diz sobre a capacidade de gasto público brasileiro? A economista Tays Marina explica que, ao contrário dos Estados Unidos, “o Brasil é um país emergente, com uma moeda mais vulnerável e altas taxas de juros”. Esse cenário torna a dívida pública brasileira mais cara.
“Isso dificulta a atração de investimentos e aumenta o risco de desvalorização do real e da inflação, caso o país continue aumentando os gastos sem responsabilidade fiscal. A expansão descontrolada das despesas pode gerar instabilidade econômica, tornando fundamental o controle dos gastos para manter a confiança dos investidores no Brasil”, explica Marina.
Questionada sobre quando o aumento do gasto público é benéfico e quando é prejudicial, a economista explica que essa atitude é benéfica em tempos de crise, como a pandemia, para “sustentar a economia, proteger o consumo e manter os empregos”. Por outro lado, a ação volta contra o país quando não há equilíbrio nas contas públicas. No ano passado, as contas públicas fecharam o ano com um déficit primário de R$ 249,124 bilhões, representando 2,29% do PIB.
“Se o governo já possui uma dívida elevada, os gastos extras podem agravar esse endividamento, elevando os juros e dificultando o crescimento econômico. Além disso, sem um aumento na produção de bens e serviços, o gasto pode gerar inflação, declínio no poder de compra da população. O aumento dos gastos públicos de forma descontrolada pode afetar a confiança dos investidores. Se os agentes econômicos perceberem que o governo está gastando mais do que pode sustentar, isso pode reduzir a disposição dos investidores de aplicar no país”, pontua Marina.
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