Um dos maiores nomes do fotojornalismo brasileiro morreu nesta segunda-feira (4). Em entrevista ao g1 em setembro de 2023, ele contou como fez os cliques que entraram para a história. Morre o fotógrafo Evandro Teixeira, aos 88 anos
Evandro Teixeira morreu nesta segunda-feira (4) após complicações de uma pneumonia. Em setembro de 2023, quando lançou exposição no Rio, um dos maiores fotojornalistas da história do Brasil contou as histórias por trás das imagens icônicas.
Baiano radicado no Rio, Evandro lembra como driblou a ditadura do general Augusto Pinochet para fotografar a morte do poeta Pablo Neruda; como usou o nome do escritor brasileiro Jorge Amado para ganhar a confiança da viúva de Neruda, Matilde Urrutia; e como acabou sendo o único fotógrafo a acompanhar o velório reservado a amigos e familiares, na casa do casal em Santiago, a La Chascona.
“Eu falei: ‘Dona Matilde, fotógrafo do Jorge Amado. Permiso! [pedido de licença em espanhol]. Ela olhou para mim: ‘Meu filho, sua presença aqui é muito importante’. Olha que sábia, mulher inteligente. Era a câmera que era importante”, contou.
Veja abaixo as histórias contadas por Evandro de como fez as fotos icônicas, em ordem cronológica.
1/4/1964: Tomada do Forte de Copacabana
Tomada do Forte de Copacabana durante golpe militar, Rio de Janeiro, RJ, 01/04/1964
Evandro Teixeira/Acervo IMS
Evandro morava na Rua Júlio de Castilhos, no Posto 6 de Copacabana, e conta que foi acordado por um amigo, às 5h da manhã de 1º de abril de 1964: “Acorda, o golpe estourou, estou indo pro Forte”.
“Me vesti correndo, escovei o dente e mais nada, só bebi um copo d’água. Usava sempre uma jaqueta jeans e a câmera escondida, com o filme no bolso. Nunca usei aquela mochila de fotógrafo para não chamar atenção. Fomos para lá”, conta.
Evandro foi acompanhado do amigo militar e fardado, que disse: “Eu vou bater continência, mas pode entrar oficial não fardado. Você é um capitão tal, inventa um nome aí'”.
“Aí ele bateu continência, eu bati também e falei que era o capitão tal – já não me lembro mais o nome (risos)”, lembra.
Em seguida, bateu a poética foto que estampou a primeira página do Jornal do Brasil no dia seguinte, com militares em contraluz debaixo de chuva (veja acima).
“Tirei o filme da câmera, botei na meia. Na saída, tive que mostrar a câmera, mas já estava com o filme escondido”, lembra, revelando um hábito que tinha para evitar ter o rolo apreendido e perder as fotos.
17/9/1965: queda de motociclista da FAB
Motociclista da Força Aérea Brasileira cai no aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, RJ, 17/09/1965
Evandro Teixeira/Acervo IMS
A imagem, que chegou a ser censurada pelos militares em uma exposição no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio em 1969, mostra um motociclista da FAB no instante em que cai de sua moto e toca o solo.
Evandro lembra que estava no carro do jornal, sendo escoltado por batedores durante a passagem de uma autoridade pelo Rio. No Aterro do Flamengo, um batedor iniciou uma série de manobras.
“Começou a fazer pirueta em volta nos carros, para proteger, sempre no do meu lado. Eu disse: ‘Esse filho da mãe vai cair. Tá fazendo muita pirueta’. Na terceira que ele fez, escorregou. Não sei se foi em uma poça de óleo… Eu já estava da janela do carro, com a cabeça e a câmera do lado de fora. Eu fiz a foto, consegui fazer a foto perfeita. E aí, a moto andou sozinha, e lá na frente bateu e incendiou. Aí eu acompanhei também”, lembra.
A foto foi parar na primeira página do jornal e, tempos depois, o motociclista o procurou para pedir que o ajudasse no depoimento porque a moto tinha sido destruída e isso gerou investigação interna no comando militar.
Anos mais tarde, Evandro diz que encontrou o militar por duas vezes mais. Na primeira, o homem foi ao lançamento de seu livro “Evandro Teixeira: fotojornalismo” – que tem um poema de Carlos Drummond de Andrade dedicado ao fotógrafo – em 1988. “Dei até um livro para ele”, conta.
Na posse de José Sarney como presidente, em 1985, o último encontro entre os dois.
“De repente, um cara lá, segurança bem-vestido, olha para mim: ‘Evandro, lembra de mim?’ Eu não lembrava. ‘Eu sou o cabo da moto, agora sou tenente, sou segurança do presidente'”, recorda. “Depois, nunca mais apareceu.”
4/4/1968: cavalaria na Candelária
Repressão policial na Candelária durante a missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, assassinado durante protesto estudantil no restaurante Calabouço, Rio de Janeiro, RJ, 04/04/1968
Evandro Teixeira/Acervo IMS
No fim de março, o comandante da tropa da PM, aspirante Aloísio Raposo, atirou à queima-roupa e matou o estudante Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos, durante um protesto no Restaurante Calabouço. O crime gerou uma série de manifestações pelo país e, em 4 de abril, houve a missa de sétimo dia – novamente marcada por repressão policial na Candelária.
Evandro lembra que um de seus colegas de JB, o premiado fotógrafo Alberto Ferreira, ficou fazendo imagens do chão, enquanto ele subiu no terraço de um edifício de três andares.
“Tinha outros fotógrafos, mas a polícia nos tirou de lá a bala. Aí, eu consegui fazer a foto da cavalaria chegando e fugimos”, lembra. “Os padres fecharam a igreja da Candelária e quem estava dentro foi salvo. Os que não conseguiram entrar, foram massacrados. Uma loucura total.”
Neste dia, Alberto Jacob teve sete costelas quebradas por um grupo de PMs que tomaram sua câmera.
Evandro recorda que a vida de fotógrafo nessa época era correr de um lado para outro nas manifestações e tentar evitar a repressão policial: “Já levei um chega para lá ou outro, mas a sorte sempre esteve ao meu lado. Nunca levei pancada ou quebraram minha câmera”.
21/6/1968: Caça ao estudante na ‘Sexta-feira Sangrenta’
Caça ao estudante durante a Sexta-feira Sangrenta, série de manifestações contra a ditadura realizadas no centro do Rio e duramente reprimidas pelo regime, Rio de Janeiro, RJ, 21/06/1968
Evandro Teixeira/Acervo IMS
Em mais um dia de correria pelas ruas do Centro do Rio, Evandro fez outra de suas fotos mais conhecidas: a de um estudante caindo ao ser perseguido por dois policiais. A imagem chegou a circular recentemente com uma mensagem fake de que seria o hoje presidente Lula na imagem.
“Vi a polícia correndo atrás dos estudantes e dando porrada nos estudantes. Aí esse estudante atravessou a Av. Treze de Maio em direção ao Theatro Municipal, e a polícia atrás dele. Quando chegou na esquina do Municipal, ele foi alcançado. Aí deram aquela porrada nele e ele caiu”, conta.
“Na foto, estão os três no ar, e os óculos do estudante estão voando. Ele deu um tremendo gemido e ficou lá estirado. Eles [policiais] tentaram levantar o rapaz, eu fiz mais uma foto e me mandei porque eles corriam atrás de mim. Eu corria muito. Disparei, não fui pego e voltei para o jornal.”
26/6/1968: Passeata dos Cem Mil
Passeata dos Cem Mil na Cinelândia, Rio de Janeiro, RJ, 26/06/1968.
Evandro Teixeira/Acervo IMS
Uma das fotos mais conhecidas do fotógrafo foi tirada durante a manifestação que ficou conhecida como a Passeata dos Cem Mil, na Cinelândia.
Durante o discurso do líder estudantil Vladimir Palmeira na Cinelândia, Evandro reparou na concentração da grande maioria dos presentes e decidiu trocar de lente para fazer a foto que, ao ser ampliada, retrata nitidamente todos os presentes.
“Estava lotado e eu nunca vi tanta gente. Aquela faixa de “Abaixo a ditadura, o povo no poder” me chamou a atenção. O que eu ficava impressionado era com as pessoas que estavam ali, a tranquilidade, o olhar, não davam um espirro sequer.”
Como havia censores dentro do Jornal do Brasil na época, a foto não foi para a capa. Outra, sem o cartaz “abaixo a ditadura” foi impressa no lugar.
22/9/1973: presos políticos no Estádio Nacional
Presos políticos encarcerados no subsolo do Estádio Nacional, Santiago, Chile, 22/09/1973
Evandro Teixeira/Acervo IMS
Evandro Teixeira viajou para o Chile em setembro de 1973, no dia seguinte ao golpe militar que levou à morte o presidente eleito Salvador Allende. Foi acompanhado do repórter Paulo César Araújo, seu parceiro de jornal.
No dia 22 daquele mês, o governo chileno levou jornalistas para o Estádio Nacional do Chile para tentar acabar com os rumores – que depois se concretizaram – de que havia violação dos direitos humanos dos presos políticos, que eram torturados e até mortos.
“Eu conhecia o Estádio Nacional como a palma da mão, porque eu tinha coberto a Copa do Mundo de 1962. Pelé, Garrincha… Fiquei andando ali pelo gramado, que era onde permitiram. Fiquei sozinho procurando até que vi um túnel para chegar ao porão. Fiquei lá disfarçando, todo mundo olhando pro coronel e eu entrei. Aí desço, chego lá embaixo, e começo a clicar os estudantes, alguns no paredão, outros dentro da grade. Fiquei no máximo cinco minutos lá embaixo, preocupado. A ‘dor de barriga’ continuava. ‘Se me pegarem, tô frito’, pensei.”
24/9/1973: viúva de Neruda ao lado do corpo no hospital
Matilde Urrutia, viúva de Pablo Neruda (de pé), na Clínica Santa Maria ao lado do corpo do poeta com (da direita para a esquerda) Laura Reyes (meia-irmã de Neruda), Manuel Solimano (pintor e amigo próximo do poeta) e Francisco Coloane (escritor chileno) Santiago, Chile, 24/09/1973.
Evandro Teixeira/Acervo IMS
Com a morte de Allende, os jornalistas que cobriam o golpe começaram a tentar encontrar Neruda, que era amigo e apoiador do presidente. Eis que Evandro recebe a informação exclusiva de que o poeta havia passado mal e tinha sido internado na Clínica Santa Maria.
O fotógrafo tentou autorização do diretor, a quem tinha sido indicado por amigos, para ir até o quarto onde estavam Neruda e Matilde, que acompanhava o marido, mas não conseguiu.
“Pedi para ele abrir um pouquinho a porta, só para eu ver, e aí eu gritei: ‘Dona Matilde! Amigo de Jorge Amado!’. Aí, ele fechou a porta, nem deixou eu terminar a frase, e me disse: ‘O senhor vá embora, que eu lhe passo o boletim das 22h. Me deu o telefone e fui embora. Liguei às 22h, e ele falou: ‘Lamentavelmente, o poeta faleceu, às 21h45′”, contou.
Evandro diz que avisou o repórter Paulo César Araújo para que o Jornal do Brasil fosse avisado, em primeira mão. “Só eu sabia”, diz Evandro.
No dia seguinte, os dois foram para o hospital. Com a câmera escondida, ficou rodando sozinho procurando uma entrada possível e sem que fosse notado pelos militares.
“Quando eu passo na lateral do hospital, uma porta aberta. Olha lá para cima, eles lá virados, eu entrei rapidamente. Vi uma sala pequena, Neruda na maca, Dona Matilde e acho que o irmão dela sentado. Cara, eu quase desmaiei.”
Evandro foi o único fotojornalista a registrar Neruda ainda na clínica logo após a morte. E lembrou do encontro que teve com o poeta e Matilde no Rio para ir além.
“Eu falei: ‘Dona Matilde, fotógrafo do Jorge Amado. Permiso! [pedido de licença em espanhol]. Ela olhou para mim: ‘Meu filho, sua presença aqui é muito importante’. Olha que sábia, mulher inteligente. Era a câmera que era importante. Eu já tinha feito a foto. Aí, o enfermeiro puxou a maca lá para dentro. Se eu não tivesse feito, tinha perdido.”
Evandro segue a história: “Aí, ela entrou e eu perguntei se poderia acompanhá-la. ‘Eu já falei: venha conosco’. Aí, entrei (…) Eu fiz várias fotos e olhava para trás e não acreditava, não tinha nenhum outro fotógrafo, só eu.”
Matilde Urrutia, viúva de Pablo Neruda, na Clínica Santa Maria ao lado do corpo do poeta, que era preparado para o velório, Santiago, Chile, 24/09/1973
Evandro Teixeira/Acervo IMS
24/9/1973: condução do corpo de Neruda até La Chascona
Condução do corpo do poeta Pablo Neruda até La Chascona, pelos seus amigos Manoel Solimano, Hernán Loyola e Nemesio Antúnez, arquiteto, pintor e gravurista, e funcionários da funerária, Santiago, Chile, 24/09/1973
Evandro Teixeira/Acervo IMS
Evandro seguiu com a família para La Chascona, casa de Neruda e Matilde em Santiago. Acima, está a foto que fez da condução do corpo por seus amigos Manoel Solimano, Hernán Loyola e Nemesio Antúnez, arquiteto, pintor e gravurista, e funcionários da funerária.
O velório na casa foi fechado para amigos e parentes, e ele era o único fotógrafo.
“Ninguém mais sabia (…) Lá dentro estava um pandemônio, tudo destruído por ele (militares)”, lembra.
25/9/1973 – cortejo e enterro de Neruda
A caminho do Cemitério Geral de Santiago, a multidão cerca o carro com o corpo de Neruda. 25/09/1973
Evandro Teixeira/Acervo IMS
No dia seguinte, durante o cortejo do corpo por Santiago, Evandro seguiu com a família fotografando as homenagens da população chilena.
A caminho do Cemitério Geral de Santiago, uma multidão foi se formando com populares, simpatizantes e militantes dos partidos da União Popular – coalizão de partidos que elegeu Allende em 1970, incluindo o Partido Comunista ao qual pertencia Pablo Neruda.
Enterro do poeta Pablo Neruda no Cemitério Geral de Santiago, Santiago, Chile, 25/09/1973
Evandro Teixeira/Acervo IMS
“A multidão foi chegando, foi chegando, foi chegando, e o Exército começou a cercar (…) Quando chegamos no cemitério, eu nunca vi uma coisa daquelas. Uma multidão. Corri na frente sempre para fotografar. Na tumba que ela ia entrar, eu corri e subi. Fiz uma foto de grande angular (veja abaixo).”
Evandro conta que não perdeu a foto, mas também não conteve a emoção.
“Comecei a derramar lágrimas nos olhos. Mas com a mão firme (…) Acredito que foi a única vez [que chorou numa pauta].”
Evandro subiu correndo para fotografar o caixão cercado pela multidão. Chile, 25/09/1973
Evandro Teixeira/Acervo IMS
Mostra ‘Evandro Teixeira, Chile, 1973’, no CCBB do Rio
g1 Rio
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