
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determina que o Congresso regulamente o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) tende a ampliar o clima de tensão entre os Poderes, com poucas perspectivas de resultados efetivos para a União.
Além das controvérsias sobre a competência da Corte para motivar a criação do tributo, especialistas veem o IGF como ineficaz e de baixo potencial arrecadatório. Tende a desestimular a prosperidade e o crescimento da migração para outros países.
Previsto na Constituição, o imposto é de competência exclusiva da União, ou seja, só pode ser criado pelo governo federal. Sua finalidade é tributar grandes patrimônios — como imóveis, aplicações financeiras e outros bens — que ultrapassem determinado valor. Nunca foi instituído porque dependia de uma lei complementar, jamais aprovada pelo Congresso. Várias propostas de regulamentação foram apresentadas, mas nenhuma prosperou.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 55/2019) proposta pelo PSOL, que acusa o Congresso de descumprir a Constituição ao não regulamentar o IGF, a maioria dos ministros acompanhou a proposta do relator – ministro Marco Aurélio Mello, hoje aposentado – de reconhecimento da omissão do Legislativo.
Flávio Dino propôs que o Supremo fixasse um prazo de 24 meses para a regulamentação, mas foi voto vencido. Os ministros André Mendonça, Gilmar Mendes e Edson Fachin não participaram do julgamento.
O único voto divergente foi o de Luiz Fux, que exclusivamente a decisão política do Congresso de não legislar sobre o tema, afirmando que o Judiciário deve respeitar essa prerrogativa.
Justiça fiscal, ativismo judicial e contas públicas
A discussão sobre o IGF vem na esteira da “justiça fiscal” propalada pelo governo Lula, em meio aos debates sobre redução das desigualdades, concentração de renda e correção do caráter regressivo do sistema tributário brasileiro. Também reflete a necessidade de arrecadação do governo para cumprir a meta fiscal e as preocupações crescentes com o ativismo judicial do STF em favor das contas públicas do Executivo.
Paolo Stelati, especialista em Direito Tributário e sócio do Bornhausen & Zimmer Advogados, lembra o exemplo recente, que acirrou ainda mais o atrito entre a Corte e o Legislativo, sobre o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF): após o Congresso vetar a medida que aumentava a alíquota do tributo, o Supremo restabeleceu a elevação barrada pelos parlamentares.
“A gente sabe que isso [a decisão do IGF] vem numa onda de ativismo judicial e de necessidade de arrecadação por conta da situação das contas públicas”, diz Stelati. “Temos um Supremo muito alinhado ao Poder Executivo.”
A especialista em direito tributário e administrativo Tattiana de Navarro, procuradora de assuntos tributários da OAB/DF, avalia que, apesar do alinhamento do Supremo à pauta, a decisão buscou evitar o agravamento das tensões entre os Poderes.
“Ficou claro no voto do relator e de alguns ministros que existe uma pressão política e econômica para que essa taxação avance”, afirma. “Porém, não cabe ao Supremo inflamar essa discussão nem ampliar essa tensão. Por isso mesmo, o Tribunal se absteve de fixar qualquer prazo para que o Legislativo aprove esse tipo de lei.”
Ao não estipular prazos, especialistas veem a decisão do STF como “simbólica”. “O STF garante que o processo de criação e aplicação das leis tributárias respeite a Constituição, mas não pode substituir o Congresso na função de criar, extinguir ou definir os detalhes de qualquer imposto”, diz Gabriel Santana Vieira, advogado especialista em direito tributário e sócio do Grupo GSV.
Imposto sobre Grandes Fortunas traz mais distorções que benefícios
Ao lado da polêmica provocada pela decisão do Supremo Tribunal Federal, tributaristas e economistas avaliam que o Imposto sobre Grandes Fortunas é ineficaz e tende a produzir mais distorções do que benefícios.
A experiência internacional serve de alerta nesse sentido. Países que já vivenciaram tributos sobre grandes patrimônios acabaram abandonando o modelo por razões práticas e econômicas.
O mais evidente é a fuga de capitais: com uma instituição de um IGF, grandes fortunas tendem a migrar para jurisdições com carga tributária menor, esvaziando a base de arrecadação que o imposto pretendido atingir.
“Esse pensamento simplista de que basta tributar patrimônio para arrecadar mais ignora que muitos indivíduos com alto poder financeiro simplesmente deixam o país em busca de regimes tributários mais leves”, afirma Stelati. “O efeito prático é negativo para a economia.”
O caso francês é emblemático: o Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna (ISF) provocou o êxodo de milhares de contribuintes ricos para a Bélgica e a Suíça. No Brasil, o risco é semelhante. Mesmo sem IGF por agora, cerca de 1,2 mil milhões deverão deixar o país em 2025, levando consigo US$ 8,4 bilhões, segundo a consultoria Henley & Partners.
Há ainda o risco de má alocação de recursos: quando o Estado cria distorções, o capital busca isenções e subsídios, não eficiência.
Na França, por exemplo, o ISF levou investidores a redirecionar recursos para imóveis e pequenas empresas isentas, obtendo investimentos em ações e startups. A transferência levou Emmanuel Macron, em 2018, a substituí-lo pela IFI, restrita a propriedades imobiliárias.
Tributar o patrimônio é punir o sucesso, diz Campos Neto
O economista Roberto Campos Neto, ex-presidente do Banco Central, sustenta que tributar o patrimônio é uma estratégia fiscal ineficiente, que estimula a prosperidade e prejudica o próprio crescimento que se busca redistribuir.
“Taxar riqueza é punir o sucesso: reduz a disposição para investir em startups ou expandir negócios e enfraquecer a criação de riquezas”, escreve Campos Neto em artigo na Folha de S.Paulo. “No fim, as poupanças absorvem e acabam financiando o próprio Estado.”
Ele lembra a experiência da Dinamarca, que extinguiu o imposto sobre riqueza entre 1989 e 1997 e registrou aumento de até 30% na acumulação e na produtividade.
Na outra ponta, o tributo desincentiva o crescimento de longo prazo. Ao reduzir a formação de capital e inibir a inovação, o imposto limita a criação de empregos e a mobilidade social.
Campos Neto cita um estudo do Revista de Economia Política segundo o qual aumentar a alíquota máxima do imposto de renda nos Estados Unidos de 50% para 75% reduziria o PIB per capita em 6%, mesmo que toda a receita fosse redistribuída aos mais pobres.
Os custos administrativos também são expressivos. Cobrar impostos sobre riqueza é até dez vezes mais caro do que sobre renda ou consumo, consumindo entre 10% e 20% da própria arrecadação. “É um imposto que consome recursos públicos para existir”, escreve Campos Neto, ao descrever o modelo como terreno útil para brechas, privilégios e corrupção.
Além dos impactos econômicos, há também uma dimensão moral e política: a tributação da riqueza divide a sociedade, incentiva o discurso da inveja e enfraquece a ética do mérito.
Citando Thomas Sowell, Campos Neto observam que o tributo fomenta o antagonismo de classes e reduz a confiança nas instituições. O resultado é um país mais polarizado, intervencionista e avesso ao risco.
“As verdadeiras riquezas nascem de incentivos alinhados à criação de riqueza – não de sua prosperidade”, diz. “O fim da linha da mediocridade econômica acontece quando subsidiamos o fracasso, regulamos em demasia o bom desempenho e taxamos o sucesso.”
Decisão sobre IGF divide especialistas
À parte eventualmente efeitos da instituição de um Imposto sobre Grandes Fortunas, a decisão do STF em si dividiu tributaristas e constitucionalistas.
Para Stelati, da Bornhausen & Zimmer Advogados, embora o STF tenha competência para julgar uma ADI, “o Plenário da Corte não é o local competente para temas políticos que cabem ao Legislativo”.
“É nesse espaço [no Congresso] que o debate sobre temas como o imposto sobre grandes fortunas ou outros temas políticos em que o STF tem adentrado, como o aborto, por exemplo, deve acontecer”, diz.
“O STF acabou adotando uma medida que eu entendo equivocada, já que não concorreria a ele essa determinação e abre margem para interpretações de outros dispositivos da Constituição que também não têm aplicação plena.”
Bruno Teixeira, sócio do TozziniFreire Advogados, acredita que o Tribunal “caminhou bem” dando um alerta ao Congresso sobre a necessidade de cumprir a Constituição. “Há quase 40 anos se discute a regulamentação desse imposto, e diversos projetos de lei já tramitaram no Congresso para isso.”
Haroldo Domingos, do Toledo Marchetti Advogados, defende que o Supremo tem competência para declarar a omissão inconstitucional, fixar restrições e até estipular um prazo para que o Legislativo legisle, “pressionando politicamente o Congresso”. “Só não pode substituir o Parlamento, criando o tributo ou definindo todos os seus elementos essenciais”, ressalta.
Para Lucas Rodrigues, do Bento Muniz Advocacia, os ministros romperam com a interpretação clássica de que a simples previsão constitucional de um tributo não obriga sua criação.
Apesar de “inovadora”, segundo ele, a decisão foi “cautelosa”. “O STF poderia ter dado eficácia concreta à sua decisão, ou mesmo fixado um prazo determinado, mas optou por seguir um caminho distinto: o do apelo ao legislador”, afirma.











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