O Banco Central aumentou os juros de novo, e mais forte desta vez. Enquanto isso, o governo Lula prepara algum corte de gastos para enganar o mercado financeiro. A combinação desencadeou uma onda de lamentações à esquerda.
Filósofos, sociólogos, historiadores e outros condenam a ideia de baixar gastos sociais. E reclamam do que compensam “proteção” às despesas financeiras, aos juros da dívida pública, “que beneficiam os grandes rentistas”.
Um ou outro é capaz de dizer que “quase metade da arrecadação” é destinada a juros e amortização da dívida, confusão que pode ser resultado de desconhecimento ou má-fé. Se reclamações do tipo vierem de ex-ministros, de gente que trabalhou no governo e deveria saber como as coisas funcionam, convém redobrar a atenção.
Não são os juros os culpados pelo rombo das contas públicas. Ao menos não pelos déficits primários com os quais o país convive desde o governo Dilma. Na verdade, o rombo é que tem sua parcela de culpa pela alta dos juros.
A diferença entre gastos primários e despesas financeiras
Podemos dividir os gastos públicos em duas categorias principais: os primários e os financeiros.
Os gastos que interessam para a meta fiscal são os primários. Ou seja, não financeiro, que não tem relação com a dívida pública. Entre os maiores aposentados estão, atualização do funcionalismo, benefícios assistenciais, seguro-desemprego, abono salarial, custeio da máquina e investimentos dos ministérios.
Quem banca as despesas primárias são as receitas primárias. Como não financeiro. Essencialmente, a arrecadação de tributos (impostos, taxas, contribuições) e também dinheiro de concessões, royalties, dividendos de empresas estatais.
Quando as receitas primárias são maiores que as despesas primárias, o governo tem uma sobra de dinheiro chamada superávit primário. É o que acontecia todo ano até 2013. Esse excedente era usado para pagar parte dos juros da dívida. Os compromissos do passado. Mais ou menos como alguém que aproveita uma sobra no fim do mês para quitar um subsídio que ficou suspenso.
O que a União registrou de 2014 em diante – à exceção de 2022 – foi déficit primário. Quer dizer: há uma década os gastos primários superaram a arrecadação. O que o governo recebe do contribuinte (e de concessões, royalties, dividendos) não cobre as despesas do dia a dia, e é preciso fazer novas dívidas para cobrir gastos cotidianos. Como quem pega dinheiro emprestado para pagar o aluguel.
E aí olhamos para a parte financeira. Como despesas financeiras são, essencialmente, o pagamento de juros da dívida, enquanto as receitas financeiras são o dinheiro levantado com a emissão de dívida de títulos pelo governo.
Para 2025, por exemplo, o governo prevê gastar quase R$ 1,7 trilhão com o refinanciamento da dívida pública. De onde virá esse dinheiro? Conforme o projeto orçamentário, da emissão de títulos. A chamada rolagem. Troca de dívida velha por dívida nova.
Alguém pode pegar esse gasto de R$ 1,7 trilhão, compará-lo com as receitas totais esperadas para 2025 (R$ 5,7 trilhões) e concluir que os juros da dívida vão consumir 30% da arrecadação de impostos. Mas não é verdade. O tal R$ 1,7 trilhão, como aqui, virá da emissão de dívida. Não há dinheiro do contribuinte.
Quanto a arrecadação de tributos irá para a dívida? O mesmo que em nove dos últimos dez anos: nem um centavo. Pois o governo prevê novo déficit primário no ano que vem, de pouco mais de R$ 40 bilhões, segundo o Orçamento. Novamente, vai pegar dinheiro emprestado para cobrir o buraco.
O Brasil teve nove déficits primários nos últimos dez anos. Nenhum foi causado pelos juros
O que acontece quando o governo passa uma década gastando mais do que arrecadar e não convence de que vai reverter esse quadro? Os financiadores da dívida excluem remunerações mais altas, como se vêem no mercado de juros futuros.
E mais: quando o governo gasta além de suas possibilidades, ajuda a alimentar a inflação. O que leva o Banco Central – encarregado de preservar o valor do dinheiro – a subir a Selic, o juro de curto prazo, que afeta outras taxas da economia.
Mas à esquerda espera que os financiadores cobrem juros mais baixos de quem não consegue pagar suas despesas diárias. Exigem que o BC baixe a Selic com a inflação batendo no teto da meta. E insiste que os juros são que são prejudicados pelo desarranjo das contas públicas. Quando, na verdade, as finanças do governo estão no vermelho antes mesmo do pagamento dos juros. E há muito tempo.
Os déficits primários de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2023 e 2024 não foram provocados pelos juros, pelo simples fato de que os juros nem sequer entram nessa conta. Se por mágica a dívida pública desaparecer, todos esses rombos existiriam do mesmo jeito – e provocaram novas dívidas, aliás.
Grande parte da esquerda faz pouco caso do resultado primário. A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, criticou em público a meta de zerar o déficit defendido pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Assim fica fácil: primeiro, diz que não há problema em ficar no vermelho e pegar dinheiro emprestado para tapar o buraco; depois, reclame da dívida, dos juros e dos credores.
É claro que os juros são um problema, dos grandes. Estão entre os maiores do mundo. Fazem a dívida pública subir ainda mais. Complica a vida de pessoas e empresas. Prejudicam a economia.
O mercado financeiro está esticado a corda? Certamente. As projeções dele próprias para o resultado fiscal são apenas um pouco inferiores às do início do ano, e na época não se via alvoroço igual às últimas semanas. Para quem apostou na alta do dólar e da Selic, nada mais conveniente do que vê-los subindo.
A questão é que a esquerda e boa parte do governo, em sua oposição sistemática ao equilíbrio fiscal, dão pretextos para o avanço do câmbio e dos juros. E fazem a alegria dos ditos “rentistas”.
Dias atrás, Gleisi se queixou das “conversas da mídia e seus economistas” sobre a questão fiscal. A deputada não é obrigada a ouvi-las. Mas seria interessante dar uma olhada na cartilha de “Introdução ao Orçamento Público” da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), órgão do próprio governo, que diz assim:
“O superávit e o déficit primário indicam se as finanças públicas estão em ordem, ou seja, se o governo está gastando ou não de acordo com suas receitas.”
Uma década de contas no vermelho deveria bastar para concluir se está tudo em ordem ou não.
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