O ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, autorizou que o governo federal se valesse de créditos extraordinários para combater as queimadas que assolam todo o país. No entanto, os recursos não precisarão ser contabilizados nos resultados primários da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ou seja, não contarão nos cálculos que indicam o déficit ou superávit nas contas públicas – se o governo gasta ou não mais do que arrecadação – aumentando o risco fiscal.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo Vevem a decisão com reserva, pois afirmam que essa “manobra” contribui para aprofundar a visão de que a gestão petista não tem responsabilidade fiscal, além de exacerbar o protagonismo do STF em um tema no qual o próprio Executivo poderia ter agido.
Como ocorre com qualquer Medida Provisória, o ministro Flávio Dino reforçou em sua decisão de que o Executivo pode abrir os créditos extras, mas caberá ao Legislativo liberar a liberação dos recursos. Ele ainda alegou que “a justificativa de cumprimento de uma regra contábil não constante na Carta Magna” não pode “negar o máximo e eficaz socorro” à população, fauna e flora da Amazônia e do Pantanal” afetadas pelas queimadas.
Na visão de Gabriel Fongaro, economista sênior do Julius Baer Family Office, grupo internacional de gestão de patrimônio, qualquer pessoa que preze pela saúde das contas públicas deveria ser contra esse tipo de medida, que aumenta o risco fiscal.
O economista explica que, em casos extraordinários, é válido exigir esse tipo de recurso extra, conforme autorizado por Dino, mas isso não pode ser uma regra.
Ele citou outras graças em que o governo usou ou planeja utilizar recursos fora da meta, como, por exemplo, para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), para proteger os danos das enchentes no Rio Grande do Sul, para pagamento de precatórios e , no orçamento de 2025, para o auxílio gás.
Com todos esses gastos fora da regra do arcabouço fiscal, ele disponibiliza que o resultado primário oficial divulgado pelo governo para compromisso da meta acaba perdendo seu significado. De acordo com Fongaro, sendo ou não contabilizadas no resultado primário, caso não haja compensações ou ajustes nos gastos por parte do governo, essas despesas extras irão impactar na escalada da dívida pública e, por consequência, em toda a economia.
“Então, a mensagem que fica para nós é que o governo está o tempo todo preocupado em gastar mais e fazer com que isso não signifique o descumprimento da meta. Mas qual é o sentido disso? É apenas para evitar o acionamento de gatilhos de gastos, porque em termos de crescimento da dívida pública, que é o que importa, a gente tem uma meta de [resultado] primário, a gente busca um superávit primário para sinalizar ao investidor que a dívida pública não tem uma trajetória explosiva”, afirmou.
Para a diretora da Instituição Fiscal Permanente, Vilma Pinto, o impacto da decisão “na sustentabilidade fiscal dependerá do nível de gasto que será realizado para atender esta emergência”. Ela também avalia que as repercussões da medida atual serão na “credibilidade do arcabouço fiscal”, que está em seu primeiro ano de vigência plena e cujo objetivo foi corrigir os problemas identificados no teto de gastos, que vigorou entre 2016 e 2022 e tinha outras regras de funcionamento.
A economista destaca que a literatura internacional mostra que as cláusulas de escape, como aquelas que prevêem recursos extras, precisam ser bem desenhadas e definidas para disposições de choque sem que seja preciso alterar a legislação.
“Observe que não se fala em não atender essas demandas, mas a regra deve ser pensada para essas situações também. Tão importante quanto o mecanismo de desvio das metas é a trajetória para seu retorno. Isso também precisa ser bem desenhado no arcabouço de regras fiscais”, disse.
STF mais uma vez assume funções de outro Poder
Além do aspecto econômico, também causa estranhamento que a decisão tenha vindo diretamente do STF e não do Executivo. Doutor em Direito Público e Constitucional e mestre em Direito Político e Econômico, Antonio Celso Baeta Minhoto, afirma que o cabe ao Executivo praticar atos de gestão e implementação das ações de fiscalização para enfrentamento de questões sociais, como é o caso dos incêndios separados por todo o país.
Além disso, o jurista explica que o Executivo tem um orçamento e que deveria saber como melhor utilizar os recursos disponíveis, “atendendo às disposições do sistema jurídico-normativo, à conveniência e oportunidade da prática deste ato ou ação”. Por essa razão, ele argumenta que a ação do STF vai além de suas prerrogativas.
“Refoge totalmente às funções do Poder Judiciário, no caso específico do STF, decidir quanto à alocação de recursos públicos do modo determinado pelo ministro Flávio Dino, algo que só poderia ter espaço – ao menos em tese – diante de comprovada omissão do Executivo, o que não parece ser o caso”, avalia o jurista.
Ainda que o protagonismo do STF possa ser questionado, a alocação de gastos extras está prevista na Constituição. Em seu artigo 167, a Carta Magna permite ao governo enviar uma Medida Provisória para créditos extraordinários ao Congresso Nacional. Por definição, esses recursos não são computados na meta de déficit primário e no limite de gastos do atual arcabouço fiscal.
Nesse sentido, Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, entende que a decisão de Dino foi correta. “Ela é justificadamente aplicável a situações como estas, das queimadas, em que a urgência se impõe”, afirmou.
O economista opinou que, se usado com “prudência, tempestivamente”, o gasto extra não afeta a “questão fiscal permanentemente” e nem “tem implicações diretas e inescapáveis sobre a dinâmica fiscal”.
Mestre em Política Ciências e vice-presidente de consultoria Arko Advice, Cristiano Noronha afirma que, ainda que seja um movimento dentro do escopo do STF, a avaliação que fica é a de “que obviamente o Supremo está exorbitando o seu poder”.
“Existe a forma do governo ponderar, vamos dizer assim, essa questão de calamidade pública e, nesse caso, o próprio governo decide o que fazer. Então, se o governo não faz esse reconhecimento, é porque há uma decisão política. Eu acho que o Supremo acaba exorbitando, sim, do poder dele”.
Noronha ainda destaca o custo desses gastos extra diante do arcabouço fiscal, que devem ser pagos, e o prejuízo para as contas públicas. “Tudo isso tem que ser ponderado nesse tipo de decisão. Então, acho que ele exorbitou, mas no final das contas o Supremo sempre tem a última palavra, né?”, salientou o analista.
Desde março, o STF exige ação do governo federal para combate às queimadas
A primeira medida do STF para o combate às queimadas ocorreu no dia 20 de março deste ano, quando determinou que o governo federal apresentasse um plano para o combate ao fogo no Pantanal e na Amazônia em até 90 dias.
Naquele momento, o STF não tomou conhecimento do “estado de coisas inconstitucionais”, que é uma violação massiva de direitos em uma determinada área. O então relator do caso, ministro André Mendonça, determinou a elaboração do plano, mas foi vencido em sua proposta para o uso do Fundo Social do Pré-Sal para ações de preservação do meio ambiente.
Quem divergiu da proposta foi justamente o ministro Flávio Dino, defendendo que essa decisão deveria ser tomada pelo Executivo e não pelo Judiciário. Além de ter sua divergência vitoriosa, Dino foi encarregado de relatar o acórdão de decisão – no âmbito do qual tomou as recentes determinações.
No dia 10 de setembro, Dino proferiu as primeiras determinações após uma audiência de conciliação no STF para tratar dessa questão. Na reunião no STF, estiveram presentes representantes de diversos ministérios, da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da Advocacia-Geral da União (AGU), além de partidos políticos.
O caso chegou ao Supremo em 2020, quando partidos políticos cobraram do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ações contra o desmatamento da Amazônia, mas só teve andamento no ano passado.
Questões climáticas exigem mudanças estruturais no Orçamento
Na prática, a decisão de Flávio Dino cria um modelo de gastos semelhante ao adotado na pandemia de covid-19 e no caso das enchentes do Rio Grande do Sul, em maio deste ano. Em 2020, o Congresso Nacional autorizou um orçamento especial para as ações de combate ao coronavírus. Já em maio deste ano, a presidência da República também invejou ao Congresso três deputados para socorro ao Rio Grande do Sul.
Felipe Salto defende que, por serem necessários, esses gastos extraordinários devem ser “compensados com maior esforço fiscal em outras rubricas”. No caso dos créditos para o Rio Grande do Sul, o economista afirma que isso não aconteceu.
Salto ainda explica que, para estabilizar a dívida pública, é preciso gerar superávit primário relevante. Uma vez que a ocorrência de eventos climáticos é cada vez mais constante, o tema precisa ser tratado de forma séria e permanentemente no Orçamento, de modo a reduzir o risco fiscal.
Para tanto, é preciso abrir espaço fiscal para contingências e imprevistos. Para o orçamento do ano que vem, o economista sugere que uma reserva de contingência de quase R$ 40 bilhões deveria ser utilizada para uso emergencial, ao invés de financiar emendas parlamentares.
“No lugar disso, a gestão orçamentária continua piorando, com espaços cada vez mais expressivos para gastos obrigatórios e novas despesas obrigatórias, a exemplo das emendas, que só crescem, ano a ano, como proporção das despesas discricionárias”, conclui.
Gastos extras com questões climáticas podem se tornar recorrentes
Gabriel Fongaro também acredita que as questões climáticas se alteram o “novo normal” e que, portanto, trata-se de um gasto que tem potencial para se repetir todos os anos. “Não é mais possível retirar essas despesas das regras, porque não é mais um gasto não recorrente quando ele se torna recorrente”, avaliou.
Não que o governo não tenha recursos reservados para combater as queimadas. Para este ano, o governo previu R$ 65 milhões no orçamento para esse fim, dos quais R$ 38 milhões já foram utilizados. Já para 2025, o orçamento prevê quase o dobro desse montante, R$ 120 milhões. Mas o valor parece longe de ser suficiente, o que leva à criação de créditos extraordinários.
Na visão de Fongaro, já que não há superávit, o melhor seria mirar no déficit zero e compensar eventuais gastos extras com o limite inferior da meta, cumprindo o que está previsto no arcabouço e reduzindo o risco fiscal.
No entanto, a gestão de Lula está justamente apostando nesse limite inferior da meta, ficando sem qualquer margem para manobrar. E a situação ainda pode piorar.
“Falta transparência na comunicação, falta complemento. A gente tem que lembrar que esse é o primeiro ano de vigência do arcabouço fiscal, mas o governo diz que só vai cumprir a segunda metade do mandato. E aí a gente descobre que não tem arcabouço fiscal, porque as regras são alteradas, e se você tem um monte de exceção para uma regra, então você não tem regra”, afirmou.
Outro ponto destacado pelo economista é que essa é a primeira metade do mandato de Lula. Tradicionalmente, após o segundo ano, os gastos do governo tendem a aumentar, com a aproximação das eleições presidenciais e uma possível busca para a reeleição.
Deixe o Seu Comentário