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'As Nadadoras': as irmãs que fugiram epicamente da Síria e tiveram destinos opostos

'As Nadadoras': as irmãs que fugiram epicamente da Síria e tiveram destinos opostos

Yusra Mardini competiu nas Olimpíadas do Rio em 2016, tornando-se a voz dos refugiados. Enquanto isso, sua irmã Sarah socorria outros imigrantes e agora enfrentava a justiça grega, podendo ser condenada a até 20 anos de prisão. Yusra Mardini em seu treino de natação, em 2016 Getty Images/via BBC A água marcou a vida das irmãs Yusra e Sarah Mardini. Levadas pelo pai, foi na água que elas aprenderam a buscar a excelência. Sua habilidade as levou a fazer parte da equipe nacional juvenil de natação do seu país, a Síria. Oscar 2023 anunciador indicado: ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ lidera com 11 indicações Oscar 2023: saiba onde assistir aos filmes indicados Na água, elas sentiram os horrores da guerra, quando uma bomba caiu na piscina onde treinaram e as levaram a sair do país. Na água, elas conheceram a angústia, quando cruzavam o mar Egeu e o bote fornecido pelos traficantes de pessoas começaram a naufragar, colocando-se em risco suas vidas e as de outras 19 pessoas. E foi na água que Yusra Mardini competiu nas Olimpíadas do Rio em 2016, tornando-se a voz dos refugiados. Enquanto isso, sua irmã Sarah socorria outros imigrantes e agora enfrentava a justiça grega, podendo ser condenada a até 20 anos de prisão. A história de Yusra e Sarah inspirou o filme As Nadadoras, da Netflix. Dirigido pela egípcia Sally El Hosaini, o filme mostra a irmã como as atrizes libanesas Nathalie e Manal Issa recriando as experiências vividas pelas irmãs sírias. Realidade explosiva Foi em 2015 que uma bomba abalou a vida das irmãs. “Ficamos treinando pela manhã e, quando terminamos, estávamos esperando a mamãe no lado de fora quando ‘bum!'”, conto Sarah à jornalista Magdalena Sodomkova para um documentário apresentado pela BBC. “Uma bomba explodiu lá dentro, havia vidro por toda parte.” “Estávamos apavoradas”, ela conta. “Perdemos vários amigos e até um treinador de natação morreu.” A Primavera Árabe – uma série de protestos, levantes e rebeliões armadas antigovernamentais que se estenderam por boa parte do mundo árabe no início da década de 2010 – havia chegado à Síria alguns anos antes. O belo nome da insurreição define uma série de enfrentamentos violentos que fizeram com que o trajeto até a piscina onde as irmãs nadavam se tornasse uma viagem perigosa. Metade da população da Síria fugiu do país. Yusra e Sarah desejavam fazer o mesmo movimento, mas seus pais não se dispunham nem mesmo a discutir essa possibilidade – até aquele dia. Assim que souberam que uma amiga de 15 anos havia chegado à Europa a salvo, como meninas feitas como malas. Em 2015, as áreas residenciais da capital da Síria, Damasco, eram um campo de batalha Getty Images/via BBC Multidões Na época, Yusra e Sarah Mardini tinham 17 e 20 anos de idade, respectivamente. O sonho delas era chegar à Alemanha, mas não eram as únicas. Naquele ano, a quantidade de refugiados e migrantes a caminho da Europa atingiu níveis tão grandes que deflagrou uma crise, provocando intensos debates políticos. Para dar uma ideia, no início de dezembro de 2015, mais de 911 mil refugiados e migrantes chegaram ao litoral europeu. Mais de 75% deles fugiram dos conflitos e perseguições no Afeganistão, no Iraque ou na Síria, o lar das irmãs Mardini. E havia o número mais doloroso: pelo menos 3,55 mil vidas se perderam durante uma viagem, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Uma rota principal havia deixado de ser uma perigosa travessia do mar Mediterrâneo entre a Líbia e a Itália. A travessia ainda mais letal passaria a ser da Turquia às ilhas gregas, como Lesbos. E foi este o caminho seguido por Yusra e Sarah Mardini. Muitas em embarcações pequenas A primeira tentativa das irmãs de cruzar o mar Egeu da cidade turca de Esmirna para chegar à Grécia foi frustrada pela polícia, que as retirou da água. Os refugiados que embarcavam em Esmirna, na Turquia, para a Grécia, precisavam jogar fora seus pertences Getty Images/via BBC Escondidas no bosque com outros refugiados, elas esperavam mais quatro dias para que as pessoas que tinham seus destinos nas mãos retornassem. “Os traficantes são como reis”, explica Yusra. “Eles aparecem e dizem: ‘chegou a hora’.” A travessia não parecia tão difícil. Com a embarcação indicada, os migrantes precisavam navegar por uma hora e meia sem que fossem descobertos. Mas os traficantes chegaram dando ordens e colocaram 17 homens, três mulheres e uma criança em um bote inflável com capacidade para sete pessoas e um motor com funcionamento duvidoso. Sem ouvir os argumentos, eles lançam o bote com os migrantes na água. “Quinze minutos depois, o motor parou de funcionar”, conta Yusra. E, ainda por cima, o bote começou a encher de água. “Um amigo do meu pai, enquanto tentava retirar a água do bote, dizia para que fôssemos fortes, que nos ajudassemos uns aos outros, que não fôssemos tomados pelo pânico”, relembra ela. “Todos sabiam a rezar, temendo pelas suas vidas. Muitos não sabiam nadar.” Angustiados, eles jogaram na água todos os pertencem que podiam. Mas o bot continuou afundando. Alguém teria que se lançar ao mar. Foi quando, de repente, “minha irmã pulou”. Yusra estava apavorada, assim como Sarah, “mas começou a mover o bote”, ela conta. E, mesmo com a segurança da sua irmã maior, Yusra também pulou na água. “Sarah estava no outro lado da embarcação, gritando para que eu voltasse a subir, mas respondeu que não”, relembra Yusra. “‘Quero ficar aqui. Quero ajudar.'” ‘Morrer lentamente’ A situação no mar Egeu era desesperada. “Duas horas depois, continuávamos na mesma posição, com os corpos e as mentes despedaçados”, segundo Yusra. O bote continuou enchendo de água. O motor, às vezes, começava a funcionar, mas voltava a parar, sacudindo as meninas abruptamente. Seus braços estavam cheios de hematomas. “Todos nós pensávamos: ‘por que fiz esta viagem, por que deixei meu país, meus pais, toda a minha família? Realmente vale a pena?'”, relembra Yusra Mardini. Vários homens também se atiraram na água, até mesmo um que “nem sabia nadar. Estava agarrado à corda.” O sol estava se pondo e fazia frio. No horizonte, Yusra conseguiu ver a ilha de Lesbos, que parecia inalcançável. “Nós estávamos nos movendo, mas não chegávamos”, segundo ela. “Era, de fato, como morrer lentamente.” Migrantes vindos da Turquia chegam a Lesbos em 2015 Getty Images/via BBC “Um amigo nosso chamou a polícia grega e turca para pedir auxílio. Ele disse que estava nos afogando. A polícia grega só respondeu dizendo ‘voltem!’, em árabe.” Foram mais quatro horas até que eles finalmente chegaram ao litoral da Grécia. “Eu me senti dona do mundo”, relembra Yusra. “Chorei, agradecendo por minha alma ainda estar no meu corpo.” Milagrosamente, elas estavam salvas, mas ainda precisavam percorrer um longo caminho e contornar vários obstáculos. A crise Na ilha de Lesbos, as irmãs pegaram uma balsa para a capital grega, Atenas, depois um ônibus para a Macedônia do Norte, um trem através da Sérvia e, por fim, foram a pé até a fronteira com a Hungria. Uma cerca de arame farpado as separava da União Europeia. Se elas cruzassem a fronteira sem serem presas pela polícia, poderiam pedir asilo. Mas elas queriam chegar à Alemanha, de forma que precisavam passar pelas autoridades sem que fossem vistas. As irmãs ficaram em uma plantação de milho, onde eles disseram que eram os traficantes de pessoas. E esperaram até altas horas da noite, escondidas e com frio, até que um deles chegou oferecendo transporte até a capital da Hungria, Budapeste, em troca de várias centenas de euros. Quando chegaram a Budapeste, Yusra e Sarah precisaram fugir do lugar aonde foram levadas, depois que ficaram sabendo que eles “vendiam órgãos dos refugiados ou, se eram atraentes, obrigavam-nos a prostituir-se”, segundo Yusra Mardini. Como tantos outros, elas foram até a estação internacional de trens da capital húngara, onde encontraram um cenário dantesco. Cerca de cinco mil refugiados ficaram ali, dia e noite esperando, poder embarcar em algum trem. A polícia tentou impedi-los e houve distúrbios. Em meio à confusão, Sarah e Yusra conseguiram entrar em um vagão, mas uma senhora as denunciou e elas foram detidas. As irmãs foram confinadas em um campo de refugiados, que “era horrível”, segundo Yusra. Tudo parecia perdido. Até que, mais uma vez, elas conseguiram fugir e, repentinamente, a sorte sorriu para elas. A então chanceler alemã Angela Merkel decidiu acolher refugiados sírios e inveja ônibus especiais para Budapeste, que os levariam para a Áustria e, dali, para a Alemanha. Seres humanos “Quando chegamos a Viena [na Áustria], estava chovendo e vimos pela janela dos moradores locais dando chá e café quente para os refugiados”, recorda Yusra no documentário da BBC. “Eles estavam nos esperando. E estava nos dando boas-vindas! Eles nos deram flores, ursinhos de pelúcia, xampu… tudo o que você pode imaginar.” “Uma mulher chamada Ann gentilmente nos deixou entrar no seu apartamento para tomar banho”, ela conta. “Eu me lavei, me lavei, me lavei e vi a água deixando escura. Todos nós tomamos banho, compramos roupas e sentimos novas pessoas.” “Ann preparou comida quente para nós e, depois de todo aquele tempo horrível, foi inacreditável voltar a nos sentir como seres humanos, com alguém dizendo: ‘você é bem-vinda , lamentamos pela sua guerra e lamentamos pelo que você está passando.” Outro sonho Apesar das dificuldades da travessia, Yusra Mardini nunca perdeu de vista seu objetivo. Ela queria continuar competindo na natação. Por meio de um intérprete no campo de refugiados, as conheceram o treinador Sven Spannekrebs. Depois de vê-las nadar, o treinador as contratou e agilizou os trâmites para que elas dormiam acesso ao alojamento e às instalações de um clube de natação local. E não foi só isso. Ele também ajudou Yusra a realizar seu sonho mais precioso: nadar nos Jogos Olímpicos. Em 2016, Yusra Mardini competiu nas Olimpíadas do Rio. Ela fez parte da primeira equipe de refugiados dos Jogos Olímpicos, ganhando uma das eliminatórias de nado borboleta. Em 2017, ela foi nomeada Embaixadora da Boa Vontade da Acnur – a mais jovem da história, com apenas 19 anos de idade. Sarah (esquerda) e Yusra Mardini em 2022 Getty Images/via BBC Já Sarah conseguiu uma bolsa para estudar no Bard College de Berlim, na Alemanha, e começou a trabalhar como planejado na ONG Emergency Response Center International, com sede em Lesbos, para ajudar outros refugiados que se arriscavam a fazer a mesma travessia perigosa que ela fez com sua irmã. Em 2018, Sarah foi presa pelas autoridades gregas, acusada, junto com dois outros membros do grupo, de cometer vários delitos, incluindo tráfico, espionagem e fraude. Ela ficou em custódia por mais de 100 dias até ser libertada sob noiva e voltar a Berlim, onde agora vivem os outros membros de sua família. Quando começou o julgamento contra ela, Sarah não foi autorizada a ir à Grécia para defender-se até. A organização Human Rights Watch considera a acusação “absurda”, possivelmente “com motivação política”. A Anistia Internacional a descreve como “injusta” e “sem valor”. E um estudo do Parlamento Europeu classificou o julgamento de Lesbos como “o maior caso de criminalização da solidariedade na Europa”. Mas as irmãs Mardini continuam sendo rostos conhecidos entre os 5,7 milhões de cidadãos sírios que se tornaram refugiados desde 2011 – uma receita dos 103 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo até meados de 2022, segundo a Acnur. Muitas dessas pessoas, como era Yusra Mardini quando saiu da Síria, são menores de 18 anos. Ouça o documentário radiofônico “Yusra: Swim for Your Life” (em inglês), que inspirou esta reportagem, no site BBC Sounds. – Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-64384249 Confira os principais filmes que devem estrear em 2023

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