BCN

Marco temporal, aborto e porte de drogas estimulam debate sobre ‘ativismo judicial’ – Notícias

Destaques-da-semana-votacoes-da-PEC-do-estouro-e-dos.jpeg



O embate entre os Poderes Judiciário e Legislativo tem ganhado holofotes em meio à discussão de temas polêmicos que são questionados em processos no Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse contexto, a expressão “ativismo judicial” se tornou rotineira na fala de parlamentares e críticos de posicionamento de ministros da Corte em questões como o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação e a descriminalização do porte de drogas.



Menos de uma semana depois que o STF derrubou a tese do marco temporal, o Congresso deu uma resposta na contramão da decisão, movimento liderado pela bancada ruralista, a mais forte das Casas Legislativas. Em um mesmo dia, o Senado aprovou o texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e levou o tema para votação no plenário, em regime de urgência. O projeto de lei do marco temporal foi aprovado sem modificações em relação ao texto que veio da Câmara por 43 votos a favor e 21 contra. 


• Compartilhe esta notícia no WhatsApp

• Compartilhe esta notícia no Telegram



No debate da proposta, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), alegou que o posicionamento do STF sobre o marco temporal e outros temas de interesse do agronegócio reacendeu a discussão sobre o ativismo judicial.


“Nós somos a bola da vez, mas nada impede que esse ativismo se vire contra outros setores. Mesmo a esquerda, que nesse momento comemora as decisões dos ministros, pode sofrer com esse ativismo no futuro”, disse Lupion, defendendo o protagonismo do Congresso. “O que o STF fez, infelizmente, traz riscos à população, e precisamos corrigir. Não são os 11 ministros que vão decidir as pautas e o futuro do país”, defendeu.



Para a bancada ambientalista, a aprovação do projeto de lei do marco temporal simboliza um “retrocesso a 1500, à chegada dos europeus e aos primeiros contatos com os indígenas”, como definiu o líder do governo no Senado, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP). Já há a promessa de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vete integralmente o projeto. O Congresso, no entanto, tem poder de derrubar o veto e fazer valer a lei. Contra esse movimento, os governistas já anunciam que vão levar o tema novamente ao Supremo. 



A coordenadora da Frente Parlamentar Ambientalista, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), garante que o projeto “está fadado ao veto presidencial” e que já nasce com vício, o que vai nortear uma ação direta de inconstitucionalidade no STF.



Para Eliziane, o embate em relação ao marco “é diferente de temas como a questão das drogas, em que foi apresentada uma PEC [proposta de emenda à Constituição] importante, como também a questão relativa ao aborto”. A justificativa é que a decisão do marco temporal tem como base um caso específico que envolve terras indígenas em Santa Catarina, e agora há uma decisão de repercussão geral. Quanto aos outros temas, para ela, há uma lacuna legislativa que cabe ao Congresso preencher. 


Drogas e aborto


Na contramão do julgamento do STF, que tende à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, o Senado encabeça uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que prevê considerar crime o porte e a posse de substância ilícita em qualquer quantidade. “A lei deverá considerar crime porte e posse de substância ilícita em qualquer quantidade. Essa é uma definição constitucional e política em relação à questão de drogas no país”, afirmou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). 


Leia mais: Senado elabora PEC antidrogas na contramão do julgamento conduzido pelo Supremo


A proposta diverge do entendimento parcial do STF. O placar da ação está em 5 a 1 pela descriminalização, mas o julgamento foi suspenso após pedido de vista. A sinalização do Supremo, segundo Pacheco, é “algo que o Senado, por sua maioria, é contra”. Para fazer um contraponto, a iniciativa é legislar, defendeu o presidente da Casa.


Quanto ao aborto, o STF discute a descriminalização da prática até a 12ª semana de gravidez. A Corte suspendeu a análise virtual para levar a questão para a discussão presencial.



No Senado, a oposição oficializou um pedido de plebiscito sobre a descriminalização ou não do aborto. A medida foi protocolada com 45 assinaturas de senadores. “Esse é o assunto que não pode simplesmente ser resolvido por 11 juízes, com toda a legitimidade que porventura tenham. É um assunto que, necessariamente, precisa ser discutido neste Parlamento e referendado pela população brasileira através de uma consulta popular, e é o que nós estamos propondo”, declarou o líder da oposição no Senado, Rogerio Marinho (PL-RN). 



São mais de 190 propostas que tramitam no Legislativo e envolvem a questão do aborto, e há a discussão por parte da ala conservadora do Congresso sobre qual das propostas deve ser levada adiante. O objetivo é reafirmar a ilegalidade do aborto em qualquer fase da gestação e punir quem realize o procedimento.


Frentes contra ‘usurpação de competência’


O conjunto de temas conflituosos entre o STF e o Congresso embasou um abaixo-assinado que alega “usurpação de competência” do Supremo com o apoio de mais de 20 frentes parlamentares e de dois partidos políticos, o Novo e o PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro. O grupo reúne aproximadamente 400 deputados e pode travar votações importantes.


O pedido é para que o Supremo recue nas análises de temas que caberiam ao Congresso. “O STF tem agido em desrespeito à nossa Constituição e aos parlamentares desta Casa. Estamos unidos contra a ditadura que o STF tenta nos impor”, afirmou o presidente da Frente Parlamentar em Defesa do Comércio e Serviços, Domingos Sávio (PL-MG). 


Análise sobre atuação do STF


Apesar das críticas de parlamentares, os temas citados foram questionados formalmente no STF, que, pela Constituição, não pode escolher qual tema julgar ou não. É o que explica a advogada constitucionalista Vera Chemim. “O STF tem a obrigação constitucional de dar uma resposta jurisdicional às demandas que lhes são destinadas por meio de ações e recursos que chegam àquela Corte. Uma vez provocado, precisa dar uma solução jurídica a cada caso concreto”, explica.


Chemin contextualiza que a suposta interferência do Poder Judiciário na seara do Poder Legislativo parte de omissão do Parlamento e de excesso de judicialização. “O tema do marco temporal ilustra essa questão. A atual polêmica envolvendo dois Poderes evidencia omissão legislativa — talvez deliberada — que acabou provocando a judicialização e o consequente exercício do que se denomina, comumente, de ativismo judicial”.




Ativismo judicial


A expressão “ativismo judicial”, como explica a advogada Raquel Braga, “é um comportamento adotado pelos magistrados que extrapolam os limites permitidos pela Constituição Federal e invade as competências dos demais Poderes”. “É comum confundir ativismo judicial com mutação constitucional, quando o significado da norma passa por um novo entendimento. Essa confusão não é saudável para o nosso sistema democrático. É preciso analisar com cautela os casos para não se antecipar em uma precipitada proclamação de ativismo cometendo injustiças”, avalia.


Braga defende a atuação do STF diante de pautas sensíveis. “Não se pode carimbar com a pecha de ativismo decisões que envolvem temas complexos e polêmicos na nossa sociedade. Se chegaram ao Supremo, é porque nosso país precisava da decisão. O direito serve para solucionar conflitos, mas, mais do que isso, para trazer a paz social, tão necessária em momentos de turbulência institucional. As decisões do topo do Poder Judiciário servem a esse propósito”, defendeu.



Na avaliação do coordenador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, Bruno Andrade, a classificação de “ativismo judicial”, por vezes, é apenas crítica de parcela da sociedade que não concorda com determinada posição adotada pelo Judiciário, que “não pode se negar a julgar os temas, ainda que o âmbito melhor para a decisão fosse o Poder Legislativo ou o Executivo”. Segundo ele, cabe à Justiça impedir eventuais abusos de maiorias contra minorias sociais.


“É o que chamamos de poder contramajoritário. Assim, a Constituição de 1988 dá ao STF o poder de analisar a produção do Poder Legislativo e verificar a adequação dele ao texto constitucional. Isso não é invasão de competências. Isso é o que a doutrina chama de judicialização da política”, explica Andrade.



Citando a discussão sobre aborto, Andrade exemplifica que, por haver uma lacuna legal, o Judiciário foi chamado a se posicionar para proteger o direito das mulheres e avaliar em que medida protege o feto. “Caso o STF faça apenas essa definição, estará dentro do espaço de conformação que a legislação não respondeu. Todavia, se o STF tentar estabelecer em sua decisão regras sobre como essa possibilidade de aborto deve ser implementada, estará invadindo competência de outros Poderes, seja do Legislativo, que deve expedir leis sobre tais procedimentos, seja o Poder Executivo, que deve regulamentar os aspectos administrativos para dar efetividade a eventual decisão do Supremo.”


Apesar do cenário de decisões opostas entre Poderes, o constitucionalista Flávio Pansieri afirma que o enfrentamento é natural da democracia moderna não só no Brasil, como de diversos países com Cortes constitucionais.

Sair da versão mobile