
A derrota do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na votação do PL antifacção na Câmara dos Deputados, nesta terça-feira (18), abriu uma nova fase de disputa sobre a estratégia nacional de enfrentamento ao crime organizado e deslocou para o Senado o protagonismo na revisão do texto. Agora, o Palácio do Planalto pretende protelar uma discussão na Casa para tentar negociar o que considera “excessos, fragilidades técnicas e pontos potencialmente inconstitucionais”.
Com a chegada do projeto ao Senado, a união política ficará sob o comando do líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP). A expectativa do Planalto é de que, com o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) na relatoria, seja possível reverter trechos relevantes do texto aprovado pela Câmara.
Vieira já indicou que fará uma revisão completa, com menos “pirotecnia” do que a vista na Câmara, e afirmou que o financiamento integral da Polícia Federal será um dos principais pontos de discussão — tema sensível para o governo, que se opõe à divisão dos bens apreendidos entre União e estados. “Vamos verificar questões de técnica legislativa, de constitucionalidade. Existem pontos de dúvida. E a grande questão será garantir o financiamento integral da Polícia Federal”, disse.
O principal debate do governo com a Câmara ocorreu pela escolha de Guilherme Derrite (PP-SP) para relatar o texto. O parlamentar, secretário licenciado da Segurança Pública de São Paulo, integra o governo Tarcísio de Freitas e defendeu que o enfrentamento ao crime organizado exige “legislação de guerra”.
Em seu relatório, Derrite retirou pontos centrais da proposta original — como infiltração policial, acesso facilitado a dados cadastrais e cooperativos da Polícia Federal em operações internacionais — e criou tipos penais e conceitos considerados vagos pelo Ministério da Justiça. A tentativa inicial do deputado de equiparar facções criminosas a grupos terroristas acabou abandonada sob pressão de especialistas e do governo.
Derrite sustenta que foi justamente essa reconfiguração que fortaleceu o projeto. “O enfrentamento do crime organizado no Brasil exige legislação de guerra em tempos de paz. Exige normas que asfixiem financeiramente as organizações criminosas, silenciem os líderes, alcancem o patrimônio ilícito, desestimulem o ingresso de membros e restabeleçam o monopólio estatal da força”, afirmou.
Os governantes, no entanto, sustentam que o texto aprovado cria sobreposições normativas capazes de gerar nulidades, abandona os pilares centrais da arquitetura proposta pelo Ministério da Justiça — como infiltração policial, acesso facilitado a dados cadastrais e coordenados da Polícia Federal em operações internacionais — e incorpora conceitos imprecisos, como o de “organização criminosa ultraviolenta”. A ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, acusou Derrite de ter apresentado seis versões “de forma atabalhoada” e afirmou que o texto “está cheio de inconstitucionalidades”.
Enquanto o governo se prepara para travar uma disputa no Senado, a direita classificou a votação como um “marco político e simbólico na resposta do Estado ao avanço de facções e milícias”. O discurso predominante entre os parlamentares foi o de que a aprovação representa a retomada da autoridade estatal em territórios dominados pelo crime organizado.
“O Brasil não aguenta mais viver refém do crime organizado. Hoje demos um passo decisivo”, disse o deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS). Na mesma linha, Rodrigo Valadares (União-SE) afirmou que “a população clama por segurança, e o Congresso respondeu à altura”.
Para o Capitão Alberto Neto (PL-AM), o foco agora deve ser a retomada dos territórios, “porque enfrentar o crime organizado não é opção — é dever”. Já Rodolfo Nogueira (PL-MS) afirmou que o projeto rompe com “anos de omissão” e simboliza um novo padrão de enfrentamento. “As facções cresceram porque restauraram governos lenientes. Hoje o Parlamento mostrou de que lado está”, declarou.
Governo quer derrubar “organização ultraviolenta” e reverter modelo de financiamento
Os líderes do governo vão concentrar seus esforços na remoção de dispositivos que o Planalto considera “juridicamente frágeis ou que desorganizariam a atual estrutura de cooperação de combate ao crime organizado”. Um dos principais alvos é o conceito de “organização criminosa ultraviolenta”. Assessores do Ministério da Justiça apontam que a definição é aberta, o que pode comprometer a segurança jurídica e gerar disputas interpretativas.
Outro ponto considerado crítico é a mudança no modelo de destinação dos bens apreendidos. A Câmara decidiu dividir os recursos entre União, estados e Distrito Federal, enquanto o governo defendeu a centralização no Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), apontado como “mais eficiente para fortalecer o orçamento e a autonomia operacional da Polícia Federal”.
O Planalto também quer reintroduzir ferramentas de restauração pelo relator, como a infiltração policial — considerada essencial para investigações complexas — e mecanismos de troca de informações com alcance internacional.
A avaliação entre os petistas é de que o Senado oferecerá um ambiente mais propício para esse debate, inclusive com a realização de audiência pública. “Temos uma missão um pouco difícil, mas eu acho que a gente consegue melhorar um pouco [o texto]”, disse o senador Rogério Carvalho (PT-SE), líder do PT na Casa.
Apesar das expectativas dos governistas, caso o Senado promova mudanças no texto, o projeto terá que voltar para nova votação na Câmara. Nesse cenário, a palavra final sobre a proposta será dos deputados.
Presente na votação da Câmara, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União), afirmou que o Senado não deve modificar o conteúdo. “Quem vai tirar parte do texto é o Lula, sem veto”, disse. Já o senador Sergio Moro (União-PR) acusou o governo de sempre ter sido “frouxo” no enfrentamento às facções e disse que o persistência atual é motivado por “razões políticas e eleitorais”.
O que muda no PL antifacção aprovado pela Câmara
O texto aprovado pela Câmara promove uma alteração mais abrangente da legislação de enfrentamento a facções desde a Lei de Organizações Criminosas (2013). Ele cria novos tipos de penais, amplia penas, fortalece mecanismos de investigação e institui regras mais agressivas de construção patrimonial e intervenção econômica. Veja os principais pontos:
1. Endurecimento amplo das penas
O projeto eleva significativamente as penas para crimes cometidos por membros de facções ou milícias.
– Homicídio e lesão seguida de morte: 20 a 40 anos
– Roubo: 12 a 30 anos
– Latrocínio: 20 a 40 anos
– Sequestro: 12 a 20 anos
– Extorsão: pena triplicada
– Extorsão mediante sequestro: aumento de 2/3
Na prática, o novo patamar eleva a gravidade das condenações e reduz a margem de negociação para acordos processuais.
2. Criação de novos tipos de penais
O PL tipifica condutas hoje tratadas de forma indireta:
- novo cangaço: ataques coordenados, explosões de caixas eletrônicas, tomada de reféns;
- territorial: controle armado ou paramilitar domínio de áreas urbanas e rurais;
- uso de drones em ações criminosas;
- ataques à infraestrutura: sabotagem de energia, telecomunicações e transporte.
Essas tipificações buscam atualizar a legislação à evolução das facções.
3. Progressão de pena mais rígida
O texto determina progressão apenas após 70% a 85% do cumprimento da pena, percentual muito superior ao exigido em crimes hediondos. Uma mudança no encarceramento e pressionou o sistema penitenciário federal.
4. Transferência de líderes de facções para o sistema federal
Os chefes de facções deverão cumprir pena exclusivamente em presídios federais de segurança máxima, institucionalizando um regime de isolamento já aplicado em casos pontuais.
5. Restrição e bloqueio patrimonial imediato
O juiz poderá bloquear, de ofício ou a pedido do Ministério Público, qualquer bem de investigação ainda no início da investigação, incluindo:
- contas bancárias,
- imóveis,
- veículos,
- empresas,
- participações societárias,
- criptomoedas.
A medida busca atingir o núcleo financeiro das facções.
6. Mudança na destinação de bens apreendidos
A Câmara instituiu um modelo de divisão de recursos entre União, estados e Distrito Federal — medida criticada pelo governo, que defende a centralização no Funpen.
7. Intervenção judicial em empresas usadas por facções
O texto autoriza intervenção direta na administração de empresas suspeitas, com:
- afastamento de sócios,
- suspensão de contratos,
- auditórios,
- resolução judicial,
- transferência de receitas para conta vinculada.
É uma das medidas para o enfrentamento dos casos de empresas de fachada usadas para lavagem de dinheiro.
8. Regras ampliadas de investigação
O PL autoriza:
- monitoramento excepcional de parlamentares,
- sigilo absoluto de medidas judiciais até sua execução,
- punições disciplinadoras a agentes públicos, fiscalizadas pelo CNJ e CNMP.
São mecanismos que ampliam o alcance estatal, mas reacendem debates sobre garantias constitucionais.











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